Por Carlos Américo Freitas Pinho, consultor jurídico da Fecomércio RJ e advogado especialista em direito do trabalho

A dinâmica peculiar do setor de comércio de bens e serviços tem evidenciado a necessidade de maior flexibilização na gestão das jornadas de trabalho. Ao contrário de setores como a indústria, cuja produção é contínua e previsível, o comércio opera sob condições diretamente influenciadas pelo fluxo de consumidores, sazonalidades e frequentes variações de demanda. Dessa forma, o atual marco jurídico-laboral brasileiro, ainda predominantemente baseado em modelos rígidos, como 5 x 2 ou 6 x 1, revela-se, muitas vezes, insuficiente para compatibilizar as necessidades do mercado com os direitos laborais fundamentais.
Modelos alternativos de jornada, como o regime 12 x 36, têm aplicação potencialmente eficaz no comércio. Já amplamente utilizada em setores como saúde e segurança, esta escala de 12 horas de trabalho, seguidas por 36 horas de descanso, oferece não apenas equidade e eficiência econômica. Negociada dentro dos limites constitucionais e conduzida via instrumentos coletivos, como convenções e acordos, promove também segurança jurídica para empregadores e empregados.
Modelos de eficácia no exterior
A flexibilidade de jornada não é um tema exclusivo do ordenamento jurídico brasileiro. Em diversas jurisdições internacionais, a modernização das relações de trabalho ocorre com foco na compatibilização de direitos trabalhistas com a eficiência econômica. Na Alemanha, por exemplo, acordos coletivos oferecem um modelo dinâmico, em que supermercados e grandes redes varejistas podem operar em horários estendidos, especialmente em períodos de alta demanda como em feriados e na Oktoberfest.
Os ajustes são ancorados no diálogo coletivo, assegurando períodos compensatórios de descanso. Implantado nos anos 1990, como parte de reformas trabalhistas, esse modelo promove tanto flexibilidade quanto estabilidade nas relações de trabalho. Estudos da Fundação Hans Böckler, ligada ao sindicalismo alemão, revelam percepção positiva sobre esses acordos, ressaltando a manutenção do bem-estar dos empregados.
De maneira semelhante, no Reino Unido, redes de varejo como a Tesco vêm adotando modelos de jornada flexível que ajustam os horários de trabalho de acordo com momentos de maior movimento, como a Black Friday. A legislação britânica, baseada no “Working Time Regulations” (regulamento de tempo de trabalho), permite que os horários sejam negociados diretamente com os trabalhadores ou com seus representantes coletivos, em acordos que visam a garantir folgas e compensações adequadas, resultando em maior produtividade, sem violação de direitos.
Na França, outro paradigma interessante é o desenvolvimento dos “acordos de flexibilidade”, fortalecidos pelas reformas trabalhistas de 2017, conhecidas como “Le Projet de Loi Travail”. Esses acordos permitem ajustes temporários nas jornadas por meio da interlocução entre sindicatos e empresas, sem comprometer o descanso mínimo legal previsto no Código do Trabalho francês. Tais práticas têm mostrado alta eficácia ao fomentar a competitividade das empresas e preservar o equilíbrio social.
Estes exemplos demonstram que a flexibilização não é uma ameaça aos trabalhadores, mas uma ferramenta moderna, desde que acompanhada de salvaguardas normativas.
Leis específicas travam debate no Brasil
Aqui no Brasil, o debate sobre uma nova regulamentação da jornada de trabalho esbarra em uma série de entraves que incluem legislações pontuais, específicas, mas cujos efeitos repercutem em amplas cadeias de organização empresarial e laboral.
Uma questão emblemática diz respeito à obrigatoriedade da concessão de repouso semanal aos domingos, a cada 15 dias, exclusivamente para mulheres, conforme disposto no artigo 386 da CLT. Em recente julgamento, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a norma mantém validade no atual ordenamento jurídico, ainda que questionada sua adequação ao princípio de igualdade da Constituição.
A decisão do STF não foi julgada sob o rito de repercussão geral, restringindo seus efeitos às partes diretamente envolvidas. Contudo, o entendimento da Corte lança luz sobre possíveis implicações jurídicas da manutenção de dispositivos com bases assimétricas, especialmente em um mercado que busca abolir distinções de gênero.
Embora tenha sido originalmente formulado com fins protetivos, tal norma pode, na prática, desencadear desequilíbrios. Há argumentos consistentes no sentido de que exigir condições mais onerosas aos empregadores na contratação de mulheres tende a desestimular sua empregabilidade, contribuindo para a perpetuação de desigualdades.
EUA aboliram entraves
Nos Estados Unidos, legislações estaduais que proibiam o trabalho de mulheres em horários noturnos ou em setores perigosos foram gradualmente abolidas nas décadas de 1970 e 1980, após constarem como inconstitucionais pela Suprema Corte, justamente por violarem o princípio de igualdade. Essa discussão reflete uma tendência global de afastar dispositivos excessivamente protetivos, os quais sob o pretexto de proporcionar vantagens, terminam por cercear a liberdade e a equidade entre os gêneros.
No Brasil, a reforma trabalhista de 2017 (Lei nº 13.467/2017) promoveu significativas alterações nos pilares sobre os quais se estruturam as relações de trabalho. Dentre os destaques, emerge a prevalência do negociado sobre o legislado, sobretudo em matéria de jornada (artigo 611-A da CLT). Tal inovação busca conferir maior autonomia às partes, reconhecendo a capacidade de empregadores e sindicatos para adaptarem as regras à realidade específica de cada setor. Por meio dessa valorização do diálogo coletivo, ferramentas como banco de horas, escalas móveis e jornadas estendidas puderam ganhar maior aplicabilidade e conformidade com as demandas contingenciais.
O avanço para um regime de maior adaptabilidade e flexibilidade negocial não pode ser confundido com precarização das relações trabalhistas; pelo contrário, trata-se de passo necessário para compatibilizar a eficiência empresarial com a dignidade profissional. A flexibilização da jornada de trabalho deve ser compreendida como instrumento fundamental para que o ordenamento jurídico acompanhe as realidades econômicas e sociais. Conciliar eficiência produtiva, igualdade de oportunidades e segurança jurídica é chave para um mercado de trabalho mais equilibrado e, sobretudo, justo.
*Esse artigo foi publicado no site Consultor Jurídico em 03/09/2025