Por Gilberto Alvarenga, consultor tributário da Fecomércio RJ

Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023, o Brasil inaugura uma nova fase de seu sistema tributário, não apenas na forma, mas também nos princípios que devem nortear sua aplicação. Entre os valores agora expressamente previstos no artigo 145, §3º, da Constituição Federal, está o princípio da cooperação entre fisco e contribuinte. Esse novo paradigma exige uma mudança substancial na cultura de fiscalização e no relacionamento entre Estado e setor produtivo.
Historicamente, a relação entre administração tributária e contribuintes no Brasil foi marcada por desconfiança mútua e posturas essencialmente punitivas. O contribuinte era, muitas vezes, visto como um potencial sonegador, e a fiscalização, como um instrumento voltado exclusivamente à arrecadação e à penalização. Esse modelo se revelou ineficiente, gerador de litígios e de elevados custos de conformidade.
Com a EC 132, o modelo proposto é outro: o Estado deve atuar como parceiro da atividade econômica, promovendo o cumprimento voluntário das obrigações tributárias com base em simplicidade, transparência, justiça e cooperação. E, nesse novo cenário, uma medida concreta e necessária é a adoção da “dupla visita” como diretriz nas ações de fiscalização, especialmente quando se tratar de micro e pequenas empresas.
A dupla visita consiste na realização de uma primeira inspeção com caráter estritamente orientador, seguida, se necessário, de nova visita para verificação do cumprimento das orientações. Apenas em caso de inércia ou reincidência é que se aplicariam sanções. Essa lógica está longe de ser leniência. Trata-se, na verdade, de um modelo amplamente reconhecido em países com elevada conformidade fiscal: a educação e o esclarecimento como ferramentas de arrecadação eficiente e justa.
O benefício é ainda mais evidente quando olhamos para as micro e pequenas empresas, que respondem por mais de 90% dos CNPJs ativos no país, conforme dados do Sebrae. Esses empreendimentos possuem estrutura administrativa limitada, poucos recursos para consultoria e alta exposição a oscilações econômicas. Para eles, um auto de infração pode significar a diferença entre a continuidade das atividades e o encerramento definitivo do negócio.
A Constituição já assegura a essas empresas tratamento jurídico diferenciado, favorecido e simplificado (art. 179), o que inclui, por óbvio, o aspecto tributário. A adoção da dupla visita para esse público é, portanto, mais do que uma política inteligente — é uma exigência constitucional.
A Lei Complementar nº 214/2025, que regulamenta os novos tributos sobre o consumo (IBS e CBS), abre espaço para esse avanço ao tratar da fiscalização nos artigos 324 a 341. É aqui que a regulamentação pode — e deve — concretizar a previsão constitucional de cooperação. A proposta da Confederação Nacional do Comércio (CNC), por exemplo, defende expressamente a obrigatoriedade de fiscalização orientadora antes do lançamento de ofício, com prazo mínimo de 30 dias para regularização voluntária. Também propõe regras claras para o Regime Especial de Fiscalização (REF), com limites temporais e direito de manifestação do contribuinte.
Além de assegurar proporcionalidade e razoabilidade, essa abordagem favorece a isonomia tributária. Não se pode exigir de uma pequena empresa o mesmo grau de prontidão fiscal de uma multinacional com robusto departamento jurídico e contábil. Tratar com equidade é reconhecer diferenças e ajustar a atuação estatal à realidade de cada contribuinte.
A valorização do Simples Nacional como política pública de desenvolvimento também está em jogo. Mais do que um regime de arrecadação simplificado, ele é um instrumento de inclusão produtiva e formalização, devendo ser protegido de abordagens fiscalizatórias excessivamente severas ou desproporcionais.
Ao privilegiar o diálogo e a orientação, o Estado melhora seus próprios indicadores de arrecadação, reduz o contencioso administrativo e judicial, e fortalece a percepção de justiça fiscal. Em um país onde a insegurança jurídica é uma das principais queixas do setor empresarial, práticas cooperativas e previsíveis representam uma vantagem competitiva nacional.
Portanto, a adoção da dupla visita não é apenas uma escolha técnica — é a concretização de um novo pacto entre contribuinte e Estado. Um pacto que, se levado a sério, pode transformar a cultura tributária brasileira e aproximá-la dos melhores padrões internacionais.